Pós doutor pela Universidade de Brasília (UnB), pesquisador desta mesma universidade, professor do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), estas são algumas partes do perfil profissional de Guilherme Paiva Martins. Nascido em Brasília-DF, Guilherme cedo descobriu as duas paixões que o acompanharia pelo resto de sua vida: a música e a filosofia. Formado em filosofia, instrumentista, compositor, ele nos mostra que há muito o que filosofar sobre a música, assim como também há muito o que se compor e pensar na filosofia.
Blog MH – Quem veio primeiro, a música ou a filosofia?
Guilherme Paiva – Na verdade elas
vieram praticamente juntas, mas acho que a música ainda veio antes. Quando eu tinha
seis anos de idade meu pai me deu um piano e eu comecei a tirar algumas músicas
simples como “parabéns pra você”, inclusive comecei a tirar de ouvido. Lia a tablatura,
mas já conseguia tirar as músicas de ouvido. Depois meu pai me deu um teclado,
e aí minha tia me deu um violão, quando eu tinha doze anos, e então eu comecei
a comprar revistas de música (naquela época vendia em banca) e comecei a tocar
com um amigo, o Derez Marques, lá de Brasília – DF, que hoje tem uma banda
chamada Amanita. Depois, com dezesseis anos, comecei a estudar violão clássico
e nessa época, o “Chapinha” (irmão do Derez Marques) me passou alguns livros do
Nietzshe, Walter Benjamin, alguns livros sobre existencialismo... Então a
música veio um pouco antes, mas nesse processo a filosofia aparece, e aí eu
começo a estudar a filosofia sem nenhum interesse de fazer ou me tornar
professor. Naquela época o meu interesse era me tornar músico...
Então a filosofia surgiu na sua
vida por causa da música?
Guilherme Paiva – Isso. A música veio
primeiro. Mas naquele mesmo momento, de convívio com esses dois amigos meus, que
são irmãos, o Derez Marques e o Chapinha, eu acabei tendo um contato maior com a
música e com a filosofia.
Blog MH – Quando você decidiu cursar filosofia?
Guilherme Paiva – Com dezoito
anos, eu decidi me mudar de Brasília-DF para ir morar em Parnaíba-PI. Lá eu
também conheci muitos amigos compositores, entre eles o músico piauiense
Teófilo Lima. Com ele tive parcerias musicais, tocando em uma banda que se
chamava “Rabiscos” e escrevendo letras de músicas juntos. Com dezenove anos eu
resolvo fazer vestibular, nessa época eu pensava em me inscrever para filosofia
ou sociologia e acabei fazendo para filosofia...
Blog MH - Como foi esse processo de
escolha?
Guilherme Paiva – Por conta de
algumas leituras que eu tinha na filosofia. Já tinha lido Nieztshe, Sartre,
pois havia lido o existencialismo, Walter Benjamin... Esses eram alguns
filósofos que eu já conhecia.
Blog MH - Você falou que, antes da graduação, não pensava na carreira
de docente. Quando surge a docência em sua vida?
Guilherme Paiva – Durante a
graduação eu fiquei ainda mais interessado em filosofia. Naquele momento já me
interessava em fazer o mestrado em filosofia e me tornar professor de
filosofia. Isso me levou a fazer pesquisas durante a graduação, então pesquisei
Nietzshe e Michel Foucault durante a graduação e no mestrado também.
Inicialmente fui fazer meu mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), na época, orientado pelo Roberto Machado. Passei um ano morando no Rio
de Janeiro. Sem bolsa, acabo retornando para Brasília e desistindo do mestrado
da UFRJ. Em Brasília já começo a lecionar filosofia em algumas
faculdades privadas, até que depois consigo entrar no mestrado em filosofia da
Universidade de Brasília, com o Miroslav, que é um iugoslavo que estava vindo
para o Brasil. Durante o mestrado eu acabei me desiludindo com a filosofia. Achei que a filosofia ficava muito restrita a analisar autores europeus e
norte-americanos, então se colocava que a filosofia é para pensar a realidade,
mas você, na verdade, não pensa sua própria realidade, você tenta interpretar o
que os filósofos disseram.
Blog MH – Na
filosofia, quais são seus principais estudos e quem mais te inspira?
Guilherme Paiva – Acho que
Nietzshe, Foucault, Walter Benjamin, naquele momento (graduação) eram esses os
filósofos que mais me inspiraram. Tinha um gosto por David Hume, pelos
filósofos empiristas, mas as minhas principais referências eram esses:
Nietzshe, Walter Benjamin, Deleuze, Foucault. Tem também o Sartre, mas depois
de um tempo eu me afastei um pouco mais dele e foquei mais nesses citados
anteriormente. Nesse momento (graduação), eu começo a estudar a genealogia do
Nietzshe, na tentativa (claro dentro da proposta da filosofia brasileira de
interpretar os filósofos) de conhecer o método da genealogia, depois o método
da arqueologia e também da genealogia do poder de Foucault. Essas metodologias,
hoje, me servem para outras finalidades em termos de pesquisa. Então eu vou
para Sociologia, no doutorado. Decidi sair da filosofia e ir para a sociologia
que é um campo totalmente diferente do que eu vinha pesquisando, apesar de ter
uma relação que era o campo da educação. Então eu começo a conhecer muitos
autores da sociologia, entre eles: Boudieu, Norbert Elias, Anthony Guiddens e
começo também, através de uma professora chamada Maria Veloso, a entrar em
contato com filósofos da América Latina, entre eles o Leopoldo Zea, e também
com filósofos da África e de descendência africana como Franz Fanon, Anthony
Appiah e o Stuart Hall. Então eu começo a ver como eu poderia utilizar aquele
método da filosofia, tanto do Foucault, de análise dos discursos, como do
Nietzshe, de uma genealogia como uma perspectiva histórica, para contribuir para a educação no Brasil. Então começo a trabalhar cultura no
Brasil a partir desses referenciais da filosofia. A contribuição que eu busco
trazer é a de analisar a realidade brasileira, tanto na área de cultura e
educação, além de analisar nosso contexto contemporâneo e essa questão das
tecnologias da comunicação e informação como forma de difusão da cultura.
Blog MH - Você falou que o estudo da filosofia brasileira se limita a
interpretar os filósofos. O estudo filosofia brasileira difere dos estudos da
filosofia em outros lugares?
Guilherme Paiva – Bom, eu não sei e não posso lhe dizer
isso, pois não tenho uma experiência de estudo da filosofia na Europa. Eu
achava que tinha mais liberdade, mas quando eu vi a história da tese de
doutorado do Foucault, que fez uma tese de doutorado sobre a história da loucura,
e aí vai lá na banca, defende e depois da defesa a banca diz: "não, tudo bem,
mas você vai ter que escrever um texto sobre Kant (ou sobre Hegel, não lembro
agora)"... Essa já é uma tradição da própria filosofia, a de trabalhar com questão
da interpretação dos filósofos. Talvez você encontre essa liberdade num momento
de mais maturidade, por exemplo, Habermas, como ele trabalha com uma
perspectiva interdisciplinar, ele não só utiliza de referenciais da filosofia,
como também da psicologia, da sociologia. Ele discute esses referenciais e utiliza desses referenciais para entender
um determinado objeto, problemática, ou questão.
Blog MH – Quem são os
principais pensadores da filosofia contemporânea, ao seu ver?
Guilherme Paiva – Hoje eu incluiria o Habermas, o Anthony
Appiah, o canadense Charles Taylor e o Leopoldo Zea. Acho que depende do
interesse de cada um, então esses são os que eu considero como grandes
referências para mim. Esses são autores que me servem para uma visão e reflexão
crítica sobre a dimensão social, cultural e política da sociedade.
Blog MH – Muito tem
se falado, inclusive dentro das universidades, sobre os temas
transdisciplinaridade e interdisciplinaridade. Como você analisa tudo isso?
Guilherme Paiva – Eu
vou começar com a interdisciplinaridade. Existem algumas pesquisas sobre esse
tema (interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade) que colocam a interdisciplinaridade como uma forma de metodologia
em que você utiliza o conhecimento de diferentes áreas. Então, por exemplo, se
você trabalhar a questão do meio ambiente, você pode utilizar a ética e também
a biologia, daí surge a bioética, uma nova área do conhecimento
interdisciplinar que envolve duas áreas do conhecimento, e do conhecimento
acadêmico, já que filosofia e biologia são conhecimentos acadêmicos. Veja que a interdisciplinaridade não envolve
somente ciência, pois filosofia não é uma ciência. Então é uma relação entre a
ciência e conhecimentos que não são científicos. A transdisciplinaridade já vai
além da interdisciplinaridade. Ela também trabalha não somente conhecimentos
acadêmicos, mas como também trabalha o chamado "conhecimento popular", os saberes
populares. Com a transdisciplinaridade, você pode trabalhar, por exemplo:
“quais são os saberes produzidos pela comunidade quilombola situada em Patu ou
em Porta Alegre (aqui no RN)”. Essa relação em que você utiliza tanto conhecimentos
acadêmicos, seja da sociologia, da antropologia ou da psicologia social (se você
for trabalhar representações sociais), como também saberes populares produzidos
pelas comunidades quilombolas. Então você transcende o limite da universidade,
do conhecimento acadêmico, e vai para o saber popular. Esse é um aspecto transdisciplinar.
O termo “trans” quer dizer além. Já o conhecimento interdisciplinar quer dizer
uma relação, uma inter-relação entre conhecimentos científicos e não
científicos. A transdisciplinaridade ela vai além, ela trata os saberes
populares, os mitos... Ela tem um aspecto diferente para a produção de
conhecimentos.
Blog MH – Você é um
adepto desses novos pensamentos?
Guilherme Paiva – Sou!
Claro que isso também foi em função da criação do mestrado em ciências sociais e
humanas (PPGMICSH-UERN), mas eu também tinha uma perspectiva interdisciplinar
por eu ter saído da filosofia e ter ido para a sociologia. A criação do
mestrado já me conduz para outro momento, esse momento transdisciplinar de sair
do campo científico e ir para o saber popular.
Blog MH – Qual seria
a visão da filosofia sobre a música e sobre a poesia?
Guilherme Paiva – Você
não vai ter uma visão consensual. Vai depender dos autores, dos filósofos.
Existem alguns filósofos, ou alguns profissionais da filosofia, estudiosos da
filosofia que desconsideram a poesia, já outros vão ter uma visão que a poesia
também é importante. Há filósofos que vão considerar a poesia como uma forma de
retomar a questão do ser, da existência. Em relação à música, a filosofia
também não tem uma visão consensual. Por exemplo, nós temos o Adorno que diz
que o Jazz não seria uma forma de arte. Para ele a única forma de arte estaria
associada à música erudita. Então essas
perspectivas não são consensuais. Pierre Levy vai analisar a música e suas
relações com as tecnologias e vai nos oferecer outra visão sobre arte, música e
cultura.
Blog MH – A partir
desse debate existente na filosofia, poderíamos afirmar que a música e a poesia
não teriam um conceito universal, totalmente definido?
Guilherme Paiva - Como são formas artísticas e que existe
vários tipos de interpretação é complicado ter uma consenso. Por exemplo, você não tem um consenso em
relação ao samba. Alguns teóricos vão dizer que o samba de roda origina o samba
carioca, outros pensam diferente... E eles são especialistas em música, não se
trata de filósofos. Então nem mesmo os especialistas têm um consenso sobre essa
questão. Não existe um consenso sobre a origem do violão, se é uma origem árabe
ou grega. Então é uma área em que as questões são mais complicadas. Sobre a
poesia eu não tenho como falar, pois é uma área em que eu não tenho estudos
aprofundados, mas eu vejo esse aspecto em relação à música.
Blog MH – E qual
seria a visão do filósofo Guilherme Paiva sobre a música?
Guilherme Paiva – Na
minha visão é um tipo de manifestação característica do ser humano. É possível,
também, relacionar a música, o modo de construção da música, com o aspecto
cultural. Você deixa de lado alguns modelos. Muito se define música a partir do
padrão de música ocidental, mas a música produzida na África quebra esse
padrão. Então penso que seja uma forma de manifestação do ser humano. Muito se
fala que a música é uma manifestação artística, mas esse conceito de arte
também foi construído em um determinado momento da história. Então a música é
uma manifestação do ser humano, de uma cultura específica ou de um diálogo
entre culturas, produzindo novas formas de manifestações musicais.
Blog MH – Assim como
a música, a filosofia também vem sendo deixada de lado pela escola. Como você
enxerga esse cenário onde a filosofia e a música não recebem a importância
devida no ensino escolar?
Guilherme Paiva – Existem
políticas do Estado, no sentido de que a filosofia retorne ao ensino médio,
assim como a música... Eu vejo uma desvalorização dessas áreas, e às vezes uma
visão preconceituosa que foi construída no Brasil, sobre a música. Essa relação
que havia sobre a pessoa que toca violão, a boemia e a malandragem, então se
você toca violão já sofre um estigma. Por outro lado, tocar piano é algo
relacionado à nobreza, às classes mais altas. Isso relacionado ao estudo do
piano. Mas não é um estudo que visa formar alguém para viver de música. Viver
de música no Brasil é algo bem recente, vários músicos tiveram dificuldades
como Ernesto Nazaré, Chiquinha Gonzaga... Por exemplo, o Jacob do Bandolim era
funcionário público. Então existe uma desvalorização da música. A falta da
filosofia nas escolas tem outras razões, como a do governo militar ter retirado
a filosofia da grade escolar por a filosofia levar a um pensamento crítico, à
reflexão crítica e isso não seria interessante. E hoje acaba tendo um
desinteresse maior em relação à filosofia porque a sociedade de consumo atual
tem um interesse no que é utilitário. Uma sociedade que possui meios de
comunicação de massa que não levam à reflexão e, assim, as crianças e os
adolescentes acaba tendo pouco interesse por essa questão de uma reflexão mais
aprofundada seja sobre a sociedade, a política ou a cultura.
Blog MH – Você concorda
que a música vem se tornando num produto comercial e perdendo a sua poesia?
Guilherme Paiva –
Essa transformação da música em mercadoria ocorre desde a formação do sistema
capitalista. Se analisarmos, Beethoven já vendia suas músicas, mas isso não
quer dizer que sua música era comercial. Claro que na sociedade atual, o
consumo leva a uma moda e ao que é o efêmero. Depois de um tempo aquilo deve
ser trocado, é descartável. Mas ainda se tem expressões musicais que não se
colocam como comerciais. Recentemente eu vi um link que mostrava Hermeto Pascoal, dizendo não ter interesse em ganhar dinheiro com a música, ele tem
interesse em fazer música. Então o interesse dele é fazer e não comercializar a
música. Então tem gente pensando diferente.
Blog MH – O que é
compor?
Guilherme Paiva – Se
desvencilhar de uma visão racional e ir para uma dimensão mais contemplativa em
que você não pensa em sistematizar. É um momento de inspiração.
Blog MH – O que é ser
musicalmente humano?
Guilherme Paiva –
É deixar fluir a música que você tem dentro de si. É colocar a música num
papel, numa partitura ou executá-la em algum instrumento.
Blog MH – Um gênero
musical?
Guilherme Paiva –
Hoje, para mim é o choro.
Blog MH – Uma música?
Guilherme Paiva –
Choro Nº 1 de Villa Lobos.
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